Em 13 de abril de 2010, entrou em vigor no Brasil o novo código de ética médica. Talvez a mudança mais importante seja a que diz respeito ao relacionamento entre os médicos e os pacientes terminais. Os profissionais continuam proibidos de abreviar a vida do doente, ainda que esse seja o desejo do paciente ou de seu representante legal. Ou seja: a eutanásia permanece fora de questão.
A partir desse novo código, porém, os médicos devem “oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas”. Isso significa que eles estão autorizados, do ponto de vista ético, a praticar a ortotanásia. Ela é definida como a morte natural, sem interferência da ciência, sem uso de métodos extraordinários de suporte à vida (como medicamentos e aparelhos) em pacientes irrecuperáveis.
A diferença entre a eutanásia e a ortotanásia parece sutil, mas não é. Na eutanásia, o médico empreende uma ação (aplica uma injeção letal ou desliga o respirador, por exemplo). Na ortotanásia, ele não empreende uma ação. Ele deixa de agir. Em vez de insistir em medidas que aumentam o sofrimento do doente sem lhe trazer qualquer benefício, o médico permite que a doença siga seu curso natural.
Um exemplo: um paciente com câncer em estado terminal, sem possibilidade de cura, com metástases no cérebro e no pulmão sofre uma parada cardiorrespiratória. A atitude mais comum entre os médicos é reanimá-lo, entubá-lo e colocá-lo na UTI. Quem pratica a ortotanásia poupa o doente disso. Tem consciência de suas limitações. E de seu lugar.
O novo código não encerra a enorme discussão em torno do fim da vida. “Ele é um avanço porque respalda a atitude do médico do ponto de vista ético, mas não tem força de lei”, diz o geriatra Franklin Santana Santos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “O profissional que pratica a ortotanásia pode ser acusado de omissão de socorro ou de eutanásia e ir para a cadeia.”
Isso só vai mudar quando a ortotanásia for autorizada pela legislação brasileira. Um projeto de lei está em tramitação no Congresso. Talvez ele só seja aprovado quando os cidadãos estiverem mais educados a respeito de suas implicações. Para isso, a sociedade precisa perder o medo de falar sobre a morte. “Não adianta tentarmos discutir cuidados paliativos enquanto as pessoas fugirem do assunto morte“, diz Santos. “Desde crianças, ainda na educação infantil, deveríamos aprender a pensar sobre a morte da forma como ela é. Ou seja: como parte da vida.”
Quando lhe dizem que trabalha com um tema pesado, Santos discorda. “Não vejo nada de melancólico”. Com apenas 41 anos, o baiano risonho de Vitória da Conquista acumula uma experiência que lhe permite dizer isso com convicção. Passou quinze anos tralhando em UTI’s. Fez pós-doutorado no Instituto Karolinska, na Suécia, e formação complementar em Saúde e Espiritualidade na Duke University, nos Estados Unidos. Atualmente orienta pesquisas sobre cuidados paliativos na Faculdade de Medicina da USP.
Lançou recentemente o livro Cuidados Paliativos: Discutindo a Vida, a Morte e o Morrer (Editora Atheneu). A obra organizada por ele traz artigos valiosos de 38 colaboradores de várias áreas. Psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, médicos, advogados, teólogos, assistentes sociais expressam suas visões sobre o assunto. Tive uma conversa com Franklin nesta semana. Por incrível que possa parecer, saí dela mais leve.
“O mundo – em especial o Ocidental – lida muito mal com a morte. Queremos ser jovens, bonitos e ricos. Falar sobre a morte significa assumir que esses três valores são efêmeros. E vazios. Quem se dispõe a encarar isso?”
A maioria dos médicos passa mais de seis anos na faculdade e não tem uma única aula para discutir a morte e o morrer. Escapa do assunto, assim como faz toda a sociedade. Há uma fuga generalizada da única certeza que podemos ter na vida. Muitos médicos lidam mal com doentes sem chance de cura. Afinal, isso os obriga, de certa forma, a lidar com o próprio fracasso. Diante dessa aflição, enchem o paciente de tratamentos inúteis. Ou fazem o contrário. Desistem totalmente do paciente que não podem salvar e investem toda a energia e os recursos nos que têm chance de recuperação. Esquecem que um médico pode fazer muito por um doente no final da vida. O que ele pode fazer tem pouco a ver com tecnologia. E muito a ver com respeito.
Acho que o novo código ajuda a redefinir o verdadeiro lugar do médico. A beleza dos cuidados paliativos é a ideia de aliviar o sofrimento quando já não é possível curar. Poucos profissionais no Brasil se preocupam com isso. E quando se preocupam ainda estão muito focados em aliviar o sofrimento físico. É preciso ir além.
“A dor espiritual é a maior de todas as dores”, diz Santos. “Por incrível que pareça, é a que menos conhecemos e na qual menos intervimos.” Um doente de frente para a morte pode ter grandes angústias espirituais. Quer saber se existe céu e inferno. Quer saber se vai reencarnar. O médico pode fazer muito por ele. Pode permitir a entrada de um pastor. Pode tomar o cuidado de não prescrever remédios ou banhos no horário em que o doente quer ir à missa na capela do hospital.
A espiritualidade vai além da religião. No fim da vida, um ateu também tem suas necessidades espirituais. Pode questionar suas ações, seu legado para a humanidade, seu papel nesse mundo. O médico que é capaz de percebê-las e respeitá-las é mais que um profissional. É gente de primeira grandeza.
Não acredito em céu. Não acredito em inferno. Não acredito em reencarnação. Mas sou capaz de compreender qual é o lugar de Deus na existência dos fiéis. A fé das pessoas – seja ela qual for – deve ser respeitada. Em toda a vida e, principalmente, no encontro com a morte. A falta de fé também.